Adeus sem culpa
Me assusta recorrer à escrita nesse momento, mas parece que eu aprendi a largar sentimentos só por aqui. Acho que viciei, em especial durante viagens. Escrevo nesse momento do avião, na ponte aérea que me fez acostumar com voos, mal sinto o frio na barriga ou o incômodo no ouvido e já perdi as contas de em quantos já voei.
Infelizmente dessa vez não saio de Salvador a Recife por um motivo que queria, é a despedida de minha avó, não a que eu tinha mais proximidade, como respondi alguns amigos preocupados com o impacto da notícia. Mas ainda assim me sinto estranho, parece que algo segura minha respiração desde que li aquela mensagem "Meu filho me atende pelo amor de Deus [alguns minutos depois] sua vó faleceu, preciso falar com você".
Sim, esse será mais um texto sobre o que a morte faz com os vivos, sabemos que ela é inevitável, mas mesmo quando alguém mais velho se despede, o luto é quase tão inevitável quanto ela. Mesmo quando a obviedade de um corpo surrado pelo tempo tira o espanto da notícia. Ainda que fosse perto a hora, sempre poderia ser amanhã, ou mês que vem, ou só mais um ano. Barganhar com o impossível, uma característica bastante humana, sempre estamos desafiando a impossibilidade. Assim, repentinamente voar deixa de ser impossível, uma pena que morrer, pelo menos até o momento, ainda é irremediável.
Portanto, hoje foi um dia esperadamente atípico, a melancolia das noites de domingos deu espaço a um sabor diferente para meu paladar. Não sei para você, mas para mim a culpa parece um espírito brincalhão à espreita esperando a primeira oportunidade de aparecer. Hoje não poderia ser diferente, esse sentimento despertou algumas vezes sempre com seus porquês. Porque você não chorou? Por que essa não era mais próxima? Por que não atendeu a ligação? Por que está tão frio? Porque foi tao ausente? Por um momento pareciam ser indagações justas. Mas honestamente, eu vou dar um tempo ao meu peito e deixá-lo livre para escolher a hora de chorar, todas essas perguntas têm respostas mas não é tempo de buscá-las.
Voar é sempre uma experiência interessante, especialmente porque a desconexão é mandatória, o modo avião nos joga diretamente num limbo. E é nesse limbo que descanso hoje, entre resolver burocracias e organizar essa viagem, esse é o primeiro momento que consigo pensar em minha avó Maria e trazer alguma lembrança à tona.
Lembro de chegar naquele apartamento em Rio Doce, na periferia de Olinda, a pista de terra e o acesso difícil caracterizavam a viagem, mas Dona Maria sempre estava lá, no apartamento com o som estridente da televisão devido sua surdez parcial e uma caixa de chocolate à espera, a caixa era entregue em mãos com o mesmo sorriso de sempre. Isso era de praxe, acho que ela se divertia assistindo a alegria dos netos com aqueles doces e, no fim, se divertia com essa dinâmica mais que as próprias crianças. Pena que esses momentos foram poucos, os mais de 2000 km que separavam minha casa em São Luís de Rio Doce tornaram esses momentos raros na minha infância. Lembro de receber uma caixa de chocolate já na fase adulta, quando morava em Recife, naquele ponto não conseguia mais devolver a alegria genuína que só uma criança recebendo doces é capaz de demonstrar. Entenda, eu sorri, achei fofo e gostei dos chocolates, mas eu não era mais o mesmo. Bom, para ela eu talvez fosse, mas o tempo não é só imponente para os que partiram, envelhecer e amadurecer também é inevitável. Pais, avós e tios também perdem suas crianças para o tempo quando elas viram adultas.
Não foi só a minha relação com a caixa de chocolate que mudou com o amadurecimento, com o tempo as desestruturas nessa parte de minha família foram ficando mais visíveis e difíceis de ignorar, aquela sensação de não pertencimento ou de faltar algo foi crescendo. Algumas coisas eram mais difíceis de ver, e eu era adulto o suficiente para não me importar muito com caixas de chocolate, mas jovem demais para saber lidar com toda informação que estava escancarada. O afastamento, antes justificado pela distância geográfica se manteve. Mas agora associado a uma dificuldade minha. A qual era facilmente camuflada pela rotina cansativa de meu protótipo de vida adulta. E agora a culpa sorrateiramente me mostra que eu poderia ter comido mais chocolates e trocado mais sorrisos com aquela senhora. E a verdade é que o futuro do pretérito além de oportunista é narcisista, não muda por ninguém e está sempre à espera de abertura para provar ao presente como este seria perfeito se fizéssemos o que não fizemos. Mas venho aprendendo a ser menos raso e cruel comigo, e essas possibilidades já me atingem menos.
O termino desse texto parte de um lamento ao primeiro parágrafo, ter recorrido a escrita apenas atenua meu sentimento hoje, meu peito está mais leve após algumas palavras pedantes e lágrimas. Tem coisas para os quais escrever não basta, só o tempo é capaz de aliviar. Sim, o tempo, o mesmo que me colocou nesse vôo emergencial, é dele que precisarei para investigar todo questionamento que surgir nessa semana. Sobre vovó Maria: sei que descansa em paz, espero que quando eu chegue onde estás, você me receba com a mesma caixa de chocolates e um sorriso igual o que era de praxe!